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O difícil exercício de ser o outro

Seis dias de batucada e um desafio: despir-se de si e deixar que o outro te atravesse. Ser e estar uma alteridade, um outro por vezes radical. Esse outro que te serve como reflexo invertido, como num espelho de Alice, em que se atravessa para além do que se vê por entre molduras. O outro que te atravessa e te revela.

Estranho exercício de deixar a fragilidade virar potência. Potência de sentir, de mover, de se comunicar sem uma única palavra. Apenas no toque, na sensação, no ombro a ombro, lado a lado… no ritmo swingado de corpos suados, pelados, mascarados.

Um despir-se que está muito além do tirar a roupa, mas despir-se de convenções sociais, de medos, de ego. Despir-se num exercício de generosidade, em abrir-se para que o outro te seja, e assim te sendo, você possa também o ser, e o sendo, você descobre também sobre si. Uma negociação constante de limites, de entres, de entrega.

É nessa relação que se constrói a experiência do batucada. De intensa disposição física, emocional, temporal, criativa. De criatividade que está mais ligada ao viver o momento aqui e agora, e menos do inventar algo novo. De um novo que vem da repetição, mesmo um dia nunca sendo igual ao outro. Mas numa repetição comprometida. Com seus próprios desejos e também com todos os outros 49 desejos que se colocam em jogo.

De que intensidade é essa que o batucada nos fala? Será dessa inconstância permanente de ser humano, que está sempre na ânsia de aprender? Ou será de uma ação quase urgente de poder reinventar todos os dias como estar em relação? Como mudar o outro, a partir de uma mudança que se dá primeiro em si? Como se transformar pela reverberação da transformação do outro? Será de uma necessidade de fazer diferente, pensar diferente e poder sentir diferente? E poder reinventar um lugar no mundo em que a escuta e o afeto ainda conjuguem?

Possam ainda existir? Uma pílula de esperança num mundo que se tornou apenas sobre o que eu digo e você tem que escutar, porque se eu estou dizendo então é porque importa!? Mesmo quando se fala de forma surda, e se discursa, onde deveria haver diálogo?

O batucada nos ensina quando mostra que sim, em seis dias podemos nos reinventar, com afeto, com desejo, com diálogo e ir pra rua. A rua pode ser a porta de nossa casa. Uma outra forma de estarmos conosco, com nossos. Ou pode ser a rua do corpo em luta, de corpos juntos que estão tão profundamente engajados, que modificam o ambiente, que movimentam o espaço, que re-existem.

O diálogo no corpo traz tanto material que é impossível fingir estar. É preciso estar a cada segundo, estar com toda a intensidade que se é estar em algo. Não com a mente anuviada por posts de facebook, ou com múltiplos devaneios que desconectam mente e corpo e colocam de novo nossas existências em caixinha modernas, em dualidades.

Esse corpo batucada é um só, e são vários.

E quando termina, um buraco de 50 corpos te toma. De 50 outros, 50 você. Tem aquele que você mal conseguiu se aproximar, mas que lembra o nome e a tatuagem, aquela que você chegou mais perto, e sabe que essa proximidade continuará, um que no começo te assustava e que depois você descobriu ser pura doçura, um que, ao contrário, se transformou de uma aparente abertura, em desafio de aproximação. São todas essas e muitas outras impressões reveladas, recombinadas e relacionadas em cada um desse eus-outros.

Não, esse momento ainda não é o de falar, apesar de minha escrita tentar agora formular palavras para dar conta de uma experiência que continuará marcada em minha pele. Esse momento é de sentir esse vazio e ao mesmo tempo essa potência que surge da entrega. Momento de ver e saber que uma pequena multidão pode mover uma multidão maior. Que somos corpos em jogo, em política cotidiana, em relação de afeto e alteridade, de empatia e escuta, de ser e deixar de ser.

E podemos assim, ainda, guardar um sopro de amor. Porque a política que precisamos fazer hoje tem urgência de amor. Não o amor romântico construído em novelas de TV. Mas um amor de poder deixar de ser eu, mesmo que só às vezes, e permitir que o outro me atravesse. É desse amor que o batucada também é. O balão em forma de coração é um símbolo compartilhado, a gente apreende rápido seu significado. Mas o amor que é ressignificado, só há um jeito de apreender que é na própria experiência, no exercício. E nunca está acabado.

——-::——– :: Esse texto foi escrito a partir de uma experiência vivida, uma residência artística e ocupação, “Batucada”, de Marcelo Evelin e Demolition Incorporada. Participei do grupo de 50 pessoas que, ao longo de 6 dias de intenso trabalho, colaborou com o processo de construção do Bataucada no Rio de Janeiro. O trabalho foi apresentado no Festival Panorama, nos dias 10, 11 e 12 de novembro de 2016. Esse é um relato pessoal, mas também construído a partir de conversas que tivemos durante o processo. É um texto que traz outras falas, eu acho. Mas que o enfoque é na alteridade, porque esse é o assunto que tem me tomado tempo, afeto, pesquisa… Afeto não apenas no sentido da emoção, mas do que faz mover, do que mobiliza.::

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