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What might dance mean for tired, fragile and suffering bodies? Marcelo Evelin and his company Demolition Inc. offer raw, head-on experiences that reveal the dark side of life and break with the certainties of contemporary dance. After a career spanning more than thirty years, the Brazilian choreographer has also focused on the body’s physical decline. Dança Doente (“Sick Dance”) stages a body that is infected by the world and dominated by external forces that are wearing it out to the point of ruin. Marcelo Evelin found his inspiration in Hijikata Tatsumi, the pioneer of butoh, also known as the “dance of darkness”, created in Japan in the 1960s. Approaching dance as the material of a molecular symptomatology, the pathology of a moving body, he rendered it viral, contagious, post-apocalyptic: the omen of certain death, brandished to reaffirm the power of life. Essential viewing!

Que peut signifier la danse pour des corps fatigués, fragiles, souffrants ? Marcelo Evelin et sa compagnie Demolition Inc. offrent des expériences brutes, frontales, qui montrent la face sombre de la vie et rompent avec les certitudes de la danse contem­poraine. Après plus de trente ans de carrière, le chorégraphe brésilien a aussi développé une attention pour la déchéance physique du corps. Dança Doente (« danse malade ») met en scène un corps infecté par le monde et dominé par des forces externes qui l'épuisent jusqu’à la ruine. Marcelo Evelin a trouvé son inspiration chez Hijikata Tatsumi, pionnier du Butoh, la « danse du corps obscur » née au Japon dans les années 1960. Approchant la danse comme la matière d’une symptomatologie moléculaire, la pathologie d’un corps en mouvement, il la rend virale, contagieuse, post-apocalyptique : le présage d’une mort certaine, brandi pour mieux réaffirmer la vie dans toute sa puissance. Essentiel !

Wat kan de dans nog betekenen wanneer de lichamen moe, breekbaar en noodlijdend worden? Marcelo Evelin en zijn gezelschap zijn bekend van rauwe, frontale dans- ervaringen die de schaduwkant van het leven tonen en breken met de veilige tradities van de hedendaagse dans. Na meer dan dertig jaar in de dans groeide bij de Braziliaanse choreograaf echter ook een bezorgdheid over het fysieke aftakelen van het lichaam. Dança Doente (‘Zieke dans’) benadert de dans als pathos, als een symptoom van een lichaam dat door de wereld geïnfecteerd is en gedomineerd wordt door externe krachten die het opgebruiken en dumpen. Inspiratie zocht en vond Marcelo Evelin bij Hijikata Tatsumi, een pionier van de Japanse schimmendans butoh in de jaren 60. Het stuk organiseert zichzelf, als een gedanste pathologie, een organisme van lichamen die uit en in zichzelf bewegen. De dans is postapocalyptisch: als een besmettelijk virus, een voorbode van een gewisse dood, maar enkel om het leven in al zijn kracht te bevestigen. Het is kunst over de essentie van ons bestaan.

Premiere

may 2017

Kunstenfestivaldesarts

Brussels - Belgium

A piece by

Marcelo Evelin/Demolition Incorporada

Concept and Choreography

Marcelo Evelin

Creation and Dance

Andrez Lean Ghizze

Bruno Moreno

Carolina Mendonça

Fabien Marcil

Hitomi Nagasu

Marcelo Evelin

Márcio Nonato

Rosângela Sulidade

Sho Takiguchi

Dramaturgy

Carolina Mendonça

Artistical collaboration

Loes Van der Pligt

Space

Marcelo Evelin and Thomas Walgrave

Light

Thomas Walgrave

Sound

Sho Takiguchi

Technical direction

Luana Gouveia

Research Advice

Christine Greiner

Costume advice

Julio Barga

Training Traditional Japanese Dance

Heki Atsushi

Voice in off

Ohno Yoshito

Photography

Mauricio Pokemon

Video

Jose huedo

Mauricio Pokemon

Production direction

Materiais Diversos +

Regina Veloso/Demolition Incorporada

Agency and distribution

Sofia Matos/Materiais Diversos | Abroad

CAMPO | Brazil

Co-productions

Brazilian Government/ This project was awarded by Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2015

Kunsten Festival des Arts, Brussels (BE) NXTSTP

Teatro Municipal do Porto - Rivoli - Campo Alegre, Porto (PT)

Festival d'Automne à Paris (FR)

Kyoto Experiment KEX (JP)

Spring Festival, Utrecht (NL)

HAU Hebbel Am Ufer/Tanzimaugust, Berlin (DE)

Teatro Municipal Maria Matos with Alkantara, Lisbon (PT)

Montpellier Danse, Montpellier (FR)

Mousounturm, Frankfurt (DE)

Goteborg Festival (SE)

TanzHaus, Dusseldorf (DE)

Vooruit, Gent (BE) | NXTSTP (with the support of the EU Culture Programme)

 

In Residency at

Teatro Municipal do Porto/Rivoli - Campo Alegre, Porto (PT)

Mousounturm, Frankfurt (DE)

CAMPO | gestão e criação em arte contemporânea, Teresina-Piauí (BR)

PACT Zolverein, Essen (DE)

Vooruit, Gent (BE)

Studios C de La B, Gent (BE)

Âncora 1

Quando a vida se exaure em movimento

Christine Greiner

 

Desde a década de 1980, alguns artistas ocidentais começaram a demonstrar um grande interesse pela dança butô. As performances de Kazuo e Yoshito Ohno foram particularmente inspiradoras e abriram caminhos para a recepção de outros artistas japoneses que, na década seguinte, passaram a se apresentar e formar dançarinos na Europa e nas Américas, como foi o caso de Ko Murobushi, Ushio Amagatsu, Anzu Furukawa e Carlota Ikeda, entre outros.

O nome de Tatsumi Hijikata surgiu pelas frestas. Como uma sombra. Isso porque, Hijikata nunca saiu do Japão e depois de sua morte em 1986, foram necessários alguns anos para que a sua pesquisa fosse divulgada. Filmes, programas e fotografias haviam sido precariamente arquivados no pequeno estúdio Asbestos kan, onde Hijikata e Akiko Motofuji viveram e trabalharam a partir da década de 1960, enquanto outros materiais foram dispersados entre discípulos e conhecidos.

Em 1998, a situação mudou. Foi criado o Hijikata Tatsumi Archive na Universidade Keio de Tokyo e a editora Kawade Shobo Shinsha publicou a primeira edição de suas obras completas (Hijikata Tatsumi Zenshû, em dois volumes).

 Finalmente, disponibilizou-se boa parte de suas coreografias e materiais de pesquisa, tanto para consultas presenciais na Universidade Keio, como através da internet, onde muitas imagens foram digitalizadas.

Entre todos esses documentos, os dezesseis cadernos de criação que constituíam o chamado sistema notacional butô-fu e o livro Yameru Maihime (Dançarina Doente) mostraram-se particularmente enigmáticos. Os cadernos incluíam recortes de revistas com pinturas e fotografias de artistas que ele admirava, como por exemplo Goya, Klimt, Wolz, Bellmer, Picasso e Bacon; além de anotações e diagramas. Embora tenham sido interpretados como estudos para desenvolver um método específico de criação em dança, mais pareciam diários de um artista sem qualquer preocupação com explicações pedagógicas. Os projetos para sistematizar e decifrar gestos, metáforas, instruções e padrões de movimento foram, em grande parte, decorrentes do esforço de seus principais alunos e dançarinos que buscaram metodologias para dar aulas de butô, como foi o caso de Yukio Waguri, Moe Yamamoto e Kayo Mikami.

Quanto ao livro Yameru Maihime, a ultima obra de Hijikata, pode ser definido como uma anti-autobiografia, uma vez que não narra propriamente histórias e acontecimentos do passado, mas constrói um fluxo de percepções de sua terra natal e reflexões sobre um corpo exaurido. Há um ritmo inesperado e uma conexão intraduzível entre aquilo que é narrado e quem narra, sem uma separação clara entre autor e acontecimentos. Cria-se um movimento caótico e muitos deslocamentos entre gestos e vozes, ou seja, Hijikata segue no texto, o mesmo anti-método de suas danças, subvertendo a gramática habitual de palavras e movimentos.

Até onde tenho notícias, este livro nunca foi publicado na íntegra em línguas ocidentais, mas disseminou-se a partir de citações traduzidas por pesquisadores e artistas que se interessaram por sua obra. 

 

 Butô no Brasil  

 

O interesse pelo butô na America Latina sempre foi grande, sobretudo entre brasileiros, argentinos e mexicanos. A primeira turnê latina de Kazuo e Yoshito Ohno ocorreu em 1986, deflagrando uma série de experiências que, a princípio, transitaram entre o exotismo, o fetiche e a auto-ajuda.

Com o passar do tempo, abriram-se outras possibilidades e, neste sentido, a publicação em português do livro de ensaios do filósofo Kuniichi Uno (A Gênese de um Corpo Desconhecido 2012) fundamentou algumas experiências que buscavam identificar uma espécie de pensamento butô e a sua potência filosófica a partir de modos singulares de perceber corpos e territorialidades.

É nesta zona de experimentações que podemos situar a obra do coreógrafo brasileiro Marcelo Evelin.

A partir de um corte politico-existencial, Marcelo mergulhou nos vestígios que encontrou da obra de Hijikata, buscando sempre muito mais do que uma técnica ou um contexto cultural exótico. A meu ver, foi o espectro de Hijikata que passou a assombra-lo como uma possibilidade de lidar com desestabilizações radicais, construindo uma política para a vida que, ao tentar sobreviver a partir de uma dança doente, escancarou politicas de extermínio e de ultra exposição do corpo.

Não se trata, portanto, da adaptação ou do aprendizado de um treinamento corporal específico. E também não há nenhuma relação com a imaginação de um butô transcendente, como tem sido investigado por outros artistas.

Nos movimentos construídos por Marcelo não cabem identidades prontas, modelos estéticos dados a priori e muito menos o fetiche por estereótipos. O que a sua pesquisa aponta são algumas questões referentes à sexualidade, a ritualizações e à reverberação de vozes e movimentos. Não se trata, portanto, de um discurso, mas sim, da corrosão de corpos por palavras, imagens e sentimentos. E o que se vê não é um modelo de hibridação cultural, mas fricções que atravessam e, ao mesmo tempo, resistem às representações simbólicas, sejam estas provenientes do Japão ou do Brasil.

 

Pontos de partida para uma Dança Doente

 

É importante observar que embora Marcelo seja brasileiro, a sua pesquisa sempre foi marcada por um intenso nomadismo. Como dançarino, a sua formação nasceu da convivência com artistas estrangeiros como John Murphy em Nova York, com quem criou a sua companhia Demolition Incorporada em 1995; e grandes nomes do cenário europeu como Odile Duboc, Pina Bausch, Mark Tompkins, Lila Green e Arthur Rosenfeld, entre outros com quem estudou e trabalhou durante os vinte anos que viveu fora do Brasil. A parceria com a Holanda foi particularmente marcante e se estende até hoje, uma vez que Marcelo continua dando aulas na Mime School da Escola Superior das Artes em Amsterdã.

Por conta deste perfil inquieto e dinâmico, o seu interesse principal nunca foi criar companhias ou grupos de dança da maneira convencional como isto costuma acontecer, mas sim, como plataformas de criação e compartilhamento, como foi o caso da sua companhia Demolition Inc. e do Nucleo do Dirceu, que coordenou com jovens artistas (a maioria de Teresina), entre 2006 a 2015, no bairro do Dirceu.

 

No caso específico de Dança Doente, a proposta começou a ser desenhada a partir do reconhecimento de pontos comuns entre o nordeste do Brasil e o nordeste do Japão, mais especificamente entre Teresina (capital do Piauí) onde Marcelo nasceu e Akita (Tôhoku) onde Hijikata nasceu. Estes dois lugares compartilham uma radicalidade climática (verão e inverno insuportáveis) e o estigma de estar fora dos grandes centros econômicos e complexos turísticos.

No entanto, a discussão não gira apenas em torno das questões geopolíticas. É possível especular, por exemplo, que a pesquisa tenha despontado muito antes de ser nomeada,  durante a criação da trilogia de Os Sertões, de Euclides da Cunha -- um dos grandes clássicos da literatura brasileira. Isso porque, para coreografar Sertão (2003), Bull Dancing (2006) e Matadouro (2010), Marcelo já havia começado a investigar as pontes entre a escrita e o corpo, a terra e a aridez da vida.

Em Mono (2008), que nasceu entre estas obras, já havia uma referência explícita a Hijikata, que foi considerado naquele contexto como uma espécie de mentor virtual para lidar com questões de sexualidade e gênero, a partir da manipulação de bonecas, que também poderiam sugerir o enfrentamento das tensões entre corpo animado e corpo inanimado, sujeito e objeto.

Em 2011, Marcelo foi convidado pelo curador Yusuke Hashimoto para participar do Kyoto Experiment com a obra Matadouro (2010). Este convite, que se repetiu nos anos seguintes, abriu novos caminhos de investigação e a possibilidade concreta de ter contato com algumas fontes primárias da obra de Hijikata arquivadas na Universidade Keio até chegar, finalmente, ao nordeste do Japão. Foram meses colhendo testemunhos de críticos, pesquisadores e artistas que lhe falaram sobre Hijikata, butô e o nordeste do Japão. Entre eles, estavam a critica de dança Kazuko Kuniyoshi, o organizador do Arquivo Hijikata Takashi Morishita, os dançarinos Yoshito Ohno e Setsuko Yamada, e o próprio Kuniichi Uno.

Estes depoimentos foram, sem dúvida, fundamentais, assim como o estudo das imagens e a viagem à Akita, onde finalmente foi possível sentir o frio brutal que atravessa os ossos, o abandono da região, a reverência tardia a um artista que foi durante anos negligenciado como uma espécie de artista maldito, mas tem sido lembrado, cada vez mais, não apenas no circuito de arte contemporânea, mas entre os moradores idosos de Tôhoku, que se reúnem regularmente para estudar o seu livro.  

 

É importante notar que Marcelo nunca conseguiu ler, de fato, Yameru Maihime, tendo em vista a inexistência de edições traduzidas. Mas isto não o impediu de sentir na pele a doença da morte – a mesma que acometeu tantos outros artistas como Marguerite Duras, Clarice Lispector, Antonin Artaud e Vaslav Nijinsky.

 

Há uma potência nesta exposição à morte que reverbera para além de Hijikata, do Brasil e do Japão, nas territorialidades dos corpos que sentem o risco de viver sem concessões, à beira de um abismo.

Talvez aí esteja a vitalidade do butô, deslocado de si mesmo e de seus contextos históricos, mas ainda assim, apto a nos ajudar a enfrentar a escassez que se anuncia nesses tempos de neoliberalismo radical.

 

 Christine Greiner é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autora do livro Leituras do Corpo no Japão e suas diásporas cognitivas (2015), Corpo em crise (2010), entre outros títulos publicados no Brasil e exterior. Tradutora dos livros de Kuniichi Uno em português.

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Photos backstage Spring Festival

fotos por Anna van Kooij

entrevista ingles

fotos por José Caldeira

Entrevista realizada por Skype no dia 07/12/2016

 

Carolina Mendonça: Pensei em começar com uma pergunta bem aberta. Em linhas gerais, o que é a nova peça? Ou como surge a ideia do Dança Doente?

 

Marcelo Evelin: Dança Doente surgiu a partir de uma espécie de fascinação com o universo do Hijikata Tatsumi, coreógrafo japonês que inventou a dança Butoh. Desde 2008 as imagens dele e suas propostas estéticas vêm atravessando meu trabalho, mas quando comecei a visitar o Japão em 2011 essas imagens começaram a ressoar para mim numa proximidade ainda maior com o meu universo, com várias questões minhas como coreógrafo, como artista...

Dança Doente vem se desdobrando dai com duas questões que são cruciais e que estão no título. A primeira é a ideia de Dança. O que é dança hoje em dia? O que a gente pode fazer com dança? Como a  gente pode pensar dança como o acionamento de um estado corporal que leva a um estado de comum? Dança como um tipo de posicionamento que é determinante na conjuntura política e artística do mundo. Essa é uma questão que o Hijikata sempre trouxe muito forte, a de tentar formular uma dança que fosse especificamente um posicionamento dele. Acho que a insistência dele com a ideia de dança trouxe a minha insistência e as minhas questões `a tona, trouxe também um enorme desejo de fazer uma peça de dança, de procurar nessa peça questionar exatamente o que sempre foi a dança para mim.

A outra questão é a ideia de Doença. O “doente” do título vem da última obra do Hijikata que é esse livro chamado A Dançarina Doente. Um livro que eu nunca consegui ler porque não existe tradução, mas que posso imaginar pelo que ouço falar. É quase uma autobiografia dançada, um livro onde ele tanto recorre `as imagens da infância, da adolescência, de como tudo começou a se construir para ele; como ele volta a todas as questões que nortearam o seu trabalho durante trinta anos. Do livro eu tirei essa ideia de doença que também está muito presente em obras dele e comecei a juntar tudo me perguntando como é que a gente pode entender dança como Sintoma. O sintoma é exatamente aquele momento onde o corpo se altera e muda a percepção de si mesmo.  Uma descrição subjetiva de uma condição do próprio corpo. Tem uma diferença entre sintoma e diagnóstico. Diagnostico é o que o médico, através da técnica dele, consegue avaliar e dar um nome. Sintoma é uma mudança, aquela alteração sutil da percepção no teu próprio corpo, da tua própria existência e que só pode ser descrita pelo paciente. Então Dança Doente é uma peça que vem se construindo em volta dessas questões.

 

C: Ouvindo você falar parece que a relação que você estabelece com o universo do Hijikata e com a própria dança tem menos a ver com forma e mais a ver como uma investigação do que é dança enquanto linguagem.

 

M: Uma das proposições do Hijikata que mais me interessa, e que foi uma das primeiras questões que surgiram no processo, é a ideia de separar o corpo da linguagem. Isso ainda é determinante na peça, quase uma questão impossível, e me interessa por esse lado também. O que eu sinto que o Hijikata fez foi exatamente não considerar a dança como forma, mas sobretudo como um processo de transformação de um estado corporal, psíquico, emocional, mental... Eu considero um elemento importante na dança esse processo de transformação constante. Eu vejo a dança como esse processo de dissolução de alguma rigidez, como algo mais fluido que de alguma maneira determina os corpos continuamente e a fricção desses corpos com outros corpos, com o mundo, com as questões que atravessam isso tudo. Eu tenho pensado em linguagem como algo fora da linguagem, como desmantelamento da linguagem. De novo, como transformação, justamente para levar para outro lugar. 

 

C: A gente está falando dessas questões que são pontos de partida e eu queria entender como elas entram na sala de ensaio. Como é o seu processo de criação?

 

M: Meu processo é sempre muito intuitivo e parece uma perseguição. É sempre um processo de perseguir aquilo que ainda não desapareceu, aquilo que fica, aquilo que insiste, que volta. Eu tenho um processo de seguir uma coisa que não é muito clara e que a cada aproximação ela se modifica. No caso dessa peça é quase uma perseguição à ideia de espectro, de fantasma. Essa peça tem uma coisa de fantasmagoria, que é uma palavra-chave para mim do que seriam as intenções, as leis e as regras que permeiam e estruturam essa peça. Então esse processo é a perseguição de uma coisa que não existe, ou que não existe mais, que talvez nunca tenha existido.

No caso dessa criação eu tive um processo anterior ao ensaios maior do que tenho normalmente. Eu já estou há dois anos na iminência de começar, me preparando constantemente e as coisas vão mudando o tempo inteiro. Todas as ideias que eu tinha para o processo, de como entrar por uma questão, por uma imagem, vão se dissolvendo, vão se transformando, ou eu vou perdendo. Para mim a pesquisa agora no Japão foi muito um processo de, ao invés de recolher mais material, elementos, e ideias sobre o Hijikata, foi o de matar todas elas. Foi uma pesquisa inteira baseada em perder todas as referências que eu tinha ou banalizar as referências mais didáticas que a principio poderiam me ajudar a construir uma peça. Relativizar, abandonar, perder tudo isso. Então, o que eu tenho de mais importante agora é, como se colocar num lugar de deixar-se atravessar por uma linguagem que não está codificada. Como é que o meu corpo, a minha dança se coloca em função de alguma coisa que atravessa, que intercepta, que se utiliza do corpo. Como se a gente fosse essas birutas de aeroporto, que estão justamente lá para a gente ver de onde o vento está vindo e para onde ele está indo.

 

C: Sim, com essa ideia do fantasma, do espectro, parece que essa dança é muito menos uma ação e muito mais uma escuta.

 

M: Uma percepção...

 

C: Ou outro entendimento de dança...

 

M: É difícil dizer, porque me parece pretensioso dizer que é um outro tipo de dança, parece que a gente vai inventar uma coisa que não existe. Mas eu sinto que sim, que tem a ver muito mais com a ampliação de uma percepção, com acionar um tipo de consciência que é absolutamente corporal, e que se dá no tempo e no espaço, então para mim é dança. Eu tenho me cobrado um rigor de dança com relação `a percepção que se tem de si mesmo, e com a permissividade desse estado corporal. Mais do que a construção de um corpo, a construção de uma linguagem corporal de movimentos e gestos, eu tenho pensado em alteração e ampliação de consciência.

 

C: Você falou muito sobre a doença como transformação, acho que a peça também tem como um dos seus espectros a ideia de Morte.

 

M: Eu sinto que o estado de doença nessa peça tem a ver com essa completa desestabilização do corpo e dos processos todos que mantem o corpo vivo. A morte é quase como o outro lado de uma enorme potência de vida. É o outro lado, mas é também a irmã gêmea, siamesa. Eu sinto intuitivamente que a potência de vida é muito próxima de um estado absoluto de morte. O que me fascina na morte é essa ideia de absoluto, a morte é a morte, alguma coisa que a gente sabe que vai acontecer e que é absolutamente determinante na nossa vida. A questão seria como podemos existir na vida com a contundência, com a magnitude com que a gente vai existir na morte?

Eu costumo pensar que as pessoas mortas vivem dentro da gente, e a dança do Hijikata foi toda muito permeada por isso, ele disse que passou a vida inteira dançando com a irmã morta dentro do corpo. Então ele passou a vida inteira  alimentando uma irmã morta, um corpo morto, e isso eu acho que foi uma enorme potência pra vida dele. Toda a ideia de assombro, de fantasma, na concepção japonesa vem através de uma espécie de sensação, uma vibração no ar que eles chamam de kehai. A ideia de Espectro é uma ideia muito importante para mim nesse processo, mas não como o entendimento ocidental de fantasma que está relacionado a uma pessoalidade. Kehai se estabelece no espaço e vem como uma situação que aconteceu, um tremor no ar. Didi-Huberman fala muito de desdobramento de imagens e do espectro que se cria na medida que essas imagens são desdobradas. Não sei exatamente como entrar aí, mas estou muito curioso, como elemento quase técnico da pesquisa, em desdobrar  as imagens criadas por Hijikata não no sentido de torná-las visíveis, mas sim de dar espaço para os espectros dessas imagens, que de alguma maneira me assolam.

 

C: Pensei na relação com o Kinjiki, da tentativa de não necessariamente refazer ou remontar a peça, mas quase deixar com que ele desapareça.

 

M: Sim, é muito mais o espectro desse Kinjiki do que a reconstrução ou uma homenagem. É mais o que sobrou, o que assombra quando eu vejo o Ohno Yoshito na cozinha da casa dele fazendo um gesto de uma dança que ele fez há 57 anos. Eu gosto de pensar o Dança Doente como um parênteses entre o Kinjiki (1959) e Yameru Maihime (1984) que são a primeira e a última obra do Hijikata. O Kinjiki como marco inicial, essa quase provocação, a chamada de atenção do Hijikata para a dança dele; e o Yameru Maihime que é um livro que ninguém consegue traduzir, que tem uma escrita toda bifurcada, ambígua, que desestabiliza uma construção de sentido, criando uma leitura muito mais sensorial.

 

C: O trabalho tem uma relação muito forte com o Japão. Eu me pergunto como você tem pensando a relação com o Brasil.

 

M: O meu último processo de pesquisa no Japão foi o de matar todas as referências, desfazer todas as pistas. Em conversas com a Setsuko Yamada, coreógrafa japonesa, ela foi muito enfática dizendo “sua pesquisa não é necessariamente o Hijikata. O seu Hijikata você tem que encontrar num outro lugar. O que o Hijikata pensava enquanto Dança, enquanto conceito não está ligado diretamente ao Japão, aos quimonos, a Tohoku”. Então ela foi muito direta, assim: “o seu butô, a sua dança está no Brasil”. Eu comecei a reconhecer cada vez mais, no próprio processo das residências, a presença do Candomblé, da Macumba atravessando esse processo. Estou tentando abrir minha percepção especificamente para esses processos ligados a ideia de Incorporação, de Atravessamento, de Mediação, de outras forças e outros mundo que atravessam corpos e que celebram com dança, como no Candomblé. A ideia de uma Ritualização também está presente na obra de Hijikata, mas de uma maneira não solene, completamente mundana e irreverente. Estou achando essas aproximações, mas é difícil dizer o quanto a gente vai entrar aí, é uma coisa que nesse momento tem atravessado o processo, como um cruzamento de referências distintas de um mesmo mundo.

 

C: Desde o início estamos experimentando uma concepção espacial que informa diretamente o material que está sendo produzido nos ensaios. Como é esse espaço e como você tem trabalhado nele?

 

M: Esse espaço ainda não está definido, ainda é uma proposição a ser testada. Eu sinto que embora ele tenha vindo muito forte nas duas residências é uma coisa ainda aberta que eu sinto que a gente tem que realmente ver se funciona. Mas a ideia surgiu de como essa dança poderia ser tarjada. Uma tarja como um tipo de censura, mas que é também um curativo, um band-aid no espaço, alguma coisa que impossibilita ou que tapa para proteger.

Eu venho trabalhando há muito tempo com a ideia de máscara, que é uma constante no meu trabalho e que eu sinto vir se apresentando de novo.  Eu estou seguindo um fluxo que vem desde 2006 com Bull Dancing que é de mascarar. Mascarar para anular a identidade mas também para des-hierarquizar o corpo, mudar o foco de visão do/sobre o corpo, quase como para apodrecer o olhar de quem vê. E eu fico pensando como é essa dança, como é que essa dança pode se dar sem rostos. 

 

C: A tarja é também um gesto muito claro em relação `a plateia. Como você tem pensando a relação com o espectador?

 

M: Eu sempre me preocupo muito com o espectador de como eu posso conseguir que aquilo que eu faço chegue de uma maneira mais indireta, mais porosa, menos intelectual ao espectador. Mais próximo de uma experiência. Desde De Repente Fica Tudo Preto De Gente eu venho pensando muito radicalmente no público, tirando ele da situação de estar sentado num lugar olhando para frente. Criando um espaço onde ele possa não necessariamente ser participativo, mas que ele possa experienciar alguma coisa horizontalmente, como um acontecimento que lhe diz respeito diretamente. Eu quero agora voltar a uma frontalidade, voltar a um palco tradicional com as pessoas sentadas no auditório, com a luz apagada. Isso tem sido um desafio, o de conseguir fazer alguma coisa acontecer em um palco italiano que possa ser uma experiência.

 

C: Desde que eu entrei em contato com os seus processos, o entendimento de Afeto se tornou muito forte para mim não só como ferramenta de trabalho, mas como uma postura. Queria que você falasse um pouquinho sobre isso.  

 

M: Acho que afeto é uma palavra importante e é um norteador dos meus processos. Mas eu sinto que o afeto está sempre muito mais em xeque-mate do que numa coisa já dada. Exatamente pela necessidade de criar alguma coisa, a gente volta para aquelas pessoas que o afeto nos assegura que elas estarão juntas, mesmo com todas as turbulências que possam acontecer no processo. Outra palavra que está ligada a doença e a sintoma é Contágio, e contaminação é uma coisa presente nesse processo. Eu penso dança como contaminação. Eu acho que dança tem essa coisa que marca, que quando é forte a gente não consegue esquecer. Dança parece que é dessa natureza onde algo que a gente viu há 30 anos atrás ainda nos afeta, entende? Pra mim ter visto a Pina Bausch dançar em 1980 no Rio de Janeiro é uma coisa que está viva em mim como um contágio, foi uma coisa que me transformou, uma doença que eu peguei, um vírus, e que eu nunca mais fiquei bom. Então eu sinto que a dança tem essa coisa potente por se dar no corpo, por ser fisiológico, por ser hormonal. O que a gente gera enquanto dança, e a maneira que o espectador vê dança, tem essa característica de contágio. Acho que, a gente poder se contagiar, se colocar nesse lugar de exposição aos vírus que estão no mundo, é um elemento do processo da peça e uma coisa que me interessa muito.

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